Até o momento, cheia de setembro do ano passado deixou 53 mortos confirmados
Perto do final do inverno, o agricultor e morador de Muçum Deoclydes José Zilio havia recebido com satisfação o resultado de seus exames rotineiros de saúde.
— O senhor tem tudo pra passar dos cem anos — assegurou o médico, olhando com espanto para os papéis à mão.
Os testes clínicos ratificavam o que a família via todos os dias: aos 94 anos, o idoso rachava lenha com um par de golpes de machado, tratava o pasto do gado e ordenhava as vacas ao alvorecer com fôlego de piá. No início de setembro, o prognóstico acabou frustrado quando Zilio foi arrastado pela histórica cheia do Rio Taquari e se esvaneceu na escuridão. Quatro meses depois da enxurrada, o agricultor é um dos cinco moradores da região atingidos pela fúria das águas que seguem sumidos.
Enquanto a maior parte dos familiares das 53 vítimas confirmadas até o momento pôde enterrar seus mortos e tenta começar um novo capítulo de suas vidas, pais, filhos, irmãos e demais parentes dos desaparecidos permanecem presos à trágica noite de 4 para 5 de setembro e a uma infindável espera por notícias. O Corpo de Bombeiros mantém buscas diárias para tentar dar respostas a essa angústia.
— A cada dia que passa, diminui um pouco mais a esperança de que ele seja encontrado. Mas não adianta, a gente tem de seguir acreditando — afirma o filho de Deoclydes e também agricultor Raul Zilio, 61 anos.
No entardecer do dia em que o Taquari saltou do leito e invadiu cidades inteiras como Muçum e Roca Sales, Raul havia deixado a casa da família, na localidade de Linha Alegre, para ajudar um amigo cuja propriedade costumava ser atingida antes pelas cheias recorrentes. Quando percebeu que a água havia subido além do normal, decidiu voltar para atender o pai, a mulher, Janete Zilio, 58 anos, e parentes que estavam no local por conta de sua festa de aniversário celebrada na véspera — dois irmãos (Sérgio e Roque) e uma cunhada, Terezinha, esposa de Sérgio.
A moradia onde se encontravam ainda cheirava a nova. Ao longo de décadas, haviam habitado uma casa de madeira já desbotada pelo tempo, mas, à custa de muito trabalho cultivando parreiras, tomates e verduras, apenas oito meses antes tinham se mudado. O novo local somava 120 metros quadrados de alvenaria distribuídos entre quatro quartos, três banheiros, sala e cozinha.
Quando Raul tentou voltar para a família, já era tarde demais: o rio havia engolido a estrada. A 200 metros de distância, viu os parentes fugirem da residência nova para a antiga, um pouco mais elevada. Uma das últimas ações de Deoclydes foi tentar soltar as quatro vacas para evitar que morressem afogadas. Não conseguiu salvá-las, e nem a si mesmo.
Já sob o manto da escuridão, a correnteza esfacelou a casa. Roque subiu em uma árvore e se salvou. Janete se agarrou ao telhado de zinco e foi arrastada 18 quilômetros rio abaixo até ser resgatada com o auxílio de uma corda, em um dos episódios mais marcantes da enchente. Sérgio e Terezinha morreram, e Deoclydes segue desaparecido.
— A gente tem expectativa de que achem pelo menos alguma coisa dele. Já seria o suficiente para dar um enterro ao meu sogro — diz Janete.
Enquanto aguardam por qualquer novidade, Raul e a mulher moram de favor com uma prima de Deoclydes, cuja filha está construindo uma casa nova para o casal no mesmo terreno. A estrutura está praticamente pronta. Falta pintar, mobiliar e, em menos de um mês, podem tentar um novo começo.
— Não recebemos nenhum tipo de ajuda oficial pra conseguir uma casa nova. Felizmente, estamos contando com o auxílio dos parentes pra ter outra casinha. Como perdemos tudo o que a gente acumulou ao longo da vida, não teríamos condição de construir outra — lamenta Raul.
Corpo de Bombeiros mantém buscas por tempo indeterminado
Enquanto familiares aguardam informações sobre o paradeiro de quem sumiu nas águas do Taquari, todos os dias pelo menos quatro bombeiros percorrem as margens e o leito do rio atrás de vestígios. No auge das buscas, logo depois da tragédia, a força de trabalho chegou a somar 250 profissionais do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, Pernambuco, Paraná e Mato Grosso. A tropa, embora reduzida agora, utiliza recursos como um sistema de georreferenciamento e um cão farejador para otimizar as buscas.
— Com certeza, somados os percursos feitos por todos que participaram da procura, já percorremos mais de mil quilômetros ao longo do rio buscando desaparecidos — estima o comandante dos bombeiros em Lajeado, capitão Thalys Stobbe.
Cada integrante da corporação que faz uma parte da varredura na região marca seu deslocamento por um sistema de GPS, o que facilita o planejamento das rotas a serem percorridas a seguir a fim de ampliar a área de cobertura da equipe. A extensão total do trecho onde já foram encontrados corpos se estende por 145 quilômetros entre o interior de Muçum e as proximidades da confluência com o Rio Jacuí, passando General Câmara.
Pontos de interesse, como locais de concentração de materiais trazidos pela água, são anotados e, quando há disponibilidade do cão farejador, são examinados com o auxílio do faro do animal.
— Como já se passou muito tempo, não há mais um cheiro facilmente perceptível (dos restos mortais) — explica Stobbe.
Outra dificuldade é que, segundo o oficial, desde a grande enchente de setembro, houve outra grande inundação em novembro e cinco elevações de menor nível do rio. Isso modifica a topografia da região, leva alguns detritos embora e traz outros. Até o momento, não há previsão para o duro trabalho de localizar as últimas vítimas da tragédia ser interrompido.
Os desaparecidos:
Fonte: GZH
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